Fichamento: Romagnoli, R. C.
“A cartografia e a relação pesquisa e vida”
“As ciências surgem no
Ocidente, favorecendo a migração do polo religião, central nas sociedades
tradicionais, para o polo razão, sustentáculo da chamada Modernidade. (...)Baseada
em esquemas de eficácia e rendimento, conquista um espaço absoluto, impondo-se
como força hegemônica na cultura ocidental moderna, relegando ao descrédito e
ao esquecimento todos os outros saberes que não estão em consonância com seus
pressupostos, a saber: objetividade, causalidade, sistematização e
produtividade.”
“As ciências
humanas se inserem no contexto da época, altamente positiva. Sua ascensão foi
marcada pela abordagem empírica, traduzida por meio de experimentos, com o
intuito de compreender a realidade. A psicologia se torna ciência aliada às ciências
Naturais, no final do século XIX, produzindo conhecimento através do método
experimental, que tem a objetividade, na quantificação e na generalização os
sustentáculos da pesquisa.(...) Essa perspectiva defende que é preciso estudar
os fenômenos sociais como se fossem naturais.”
“Até
a 2ª metade do séc XX, a pesquisa experimental e seu método constituíam o
padrão de produção de conhecimento científico, inclusive para a própria
Psicologia. A partir dessa época, no entanto, paralela à vertente positivista,
base desse tipo de pesquisa, surge um movimento filosófico, que sustenta a
visão de mundo existencial, em que vivencia e a percepção que o ser humano tem
de suas experiências torna-se essencial. (...)inaugura uma mudança radical da
investigação científica e insiste no homem que tem consciência de sua própria
vida e da dos seres com quem se relaciona, como peça fundamental do
trabalho.(Forghieri, 1993)(...) Surge nesse momento histórico a distinção entre
pesquisa quantitativa e pesquisa qualitativa(Smith 1994)
“Com
forte crítica à neutralidade científica, surge a pesquisa-ação, também chamada
de pesquisa participante, enfatizando o envolvimento do pesquisador com seu
objeto de estudo, pois a pesquisa passa a ser também um fator de transformação
social.”
“Todo
fenômeno ou processo social deve ser entendido nas suas determinações e
transformações dadas pelos sujeitos, mediante uma relação intrínseca de
oposição e complementaridade entre mundo natural e social, entre pensamento e
base material. Dessa maneira, a cientificidade está associada à complexidade da
natureza e das culturas, e o conhecimento sempre vem associado à práxis, pois a
lógica do pensamento está vinculada aos processo históricos das mudanças, dos
conflitos sociais e suas contradições.”
“é
necessário pontuar que cada método possui sua explicação do que ocorre entre
sujeito e objeto. O método experimental parte do pressuposto de que essa
articulação é mediada por relações ordenadas entre fatos observados
empiricamente.(...)O método fenomenológico, por sua vez, busca nessa relação a consciência
que daí emerge, através dos significados que o sujeito atribuiu ao objeto.(...)
o método dialético tem como objetivo abranger a articulação entre o dia-a-dia
de determinado grupo social, de certo objeto de estudo, com o sistema de ideias
e representações que o constitui e que deriva na alienação.(...)(Paulon,2005)”
“o
método científico é um instrumento para a explicação da verdade, embasado, como
vimos, na conexão assídua entre teoria e procedimentos metodológicos. E a
racionalidade, mesmo que seja objeto de grande questionamento nas Ciências
Humanas, a garantia de seu alcance.”
“hoje,
a própria ciência está em crise. De acordo com Santos(2002), “estamos no fim de
um ciclo de hegemonia de certa ordem científica. As condições epistêmicas das
nossas perguntas estão inscritas no avesso dos conceitos que utilizamos para
lhes dar resposta”
“nos
deparamos com a complexidade da realidade, e também da subjetividade, opondo-se
frontalmente a um conhecimento que se impõe como verdade, generalizante e
simplificado, e que tem como objetivo alcançar a previsibilidade a partir de um
espaço inteligível de certezas(Morin, 1996) “
“de
acordo com Veiga-neto (2002), vivemos hoje a emergência de um pensamento pós
moderno que visa a um questionamento continuo das ações com analise crítica.
Esse pensamento possui como característica: a humildade epistemológica, ao não
perseguir a verdade;(...) Nesse sentido, Morin (1983) faz uma crítica ao paradigma
moderno, chamando-o de paradigma da simplificação.”
“Em
contrapartida, vem á tona um conhecimento não dualista, que não faz a separação
ente natureza/cultura, objetivo/subjetivo, quantitativo/qualitativo. Além
disso, insiste na produção de um conhecimento local e transitório que reconhece
a necessidade de uma pluralidade metodológica, pois “cada método é uma linguagem,
e a realidade responde na língua que foi perguntada”(Santos,2002.p.48),
destacando-se a operação reducionista que daí deriva.”
“a
transdisciplinaridade busca exatamente a
perda da identidade de cada teoria, de cada prática, para ocorrer algo no “entre”,
a partir da desestabilização das “certezas” de cada disciplina, apostando ainda
na criação de uma relação de intercessão com outros
saberes/poderes/disciplinas, pois é nesse “entre” que a invenção acontece, como
nos chama a atenção Benevides de Barros (2005)”
“A
cartografia se apresenta como valiosa ferramenta de investigação, exatamente
para abarcar a complexidade, zona de indeterminação que a acompanha, colocando
problemas, investigando o coletivo de forças em cada situação, esforçando-se
para não se curvar aos dogmas reducionistas.”
“Drawin
(2001), método corresponderia a um caminho levado a um fim, associado a uma “reinvindicação
de um trabalho, de um renovado esforço, o que não seria necessário se já se
possuísse uma fórmula prefixada, e se o caminho para o conhecimento já houvesse
sido conquistado”(p.10). Nessa perspectiva, o método é uma nova proposta para
reencontrar o saber que se encontra em crise.”
“A
cartografia, como portadora de certa concepção de mundo e de subjetividade, a
serem apresentados abaixo, traz um novo patamar de problematização,
contribuindo para a articulação de um conjunto de saberes, inclusive outros que
não apenas o científico, e favorecendo a revisão de concepções hegemônicas e
dicotômicas.”
“o
método cartográfico “desencadeia um processo de desterritorialização no campo
da ciência, para inaugurar uma nova forma de produzir o conhecimento, um modo
que envolve a criação, a arte, a implicação do autor, artista, pesquisador,
cartógrafo” (Mairesse, 2003, p.259)
“A
subjetividade é constituída por múltiplas linhas e planos de forças que atuam
ao mesmo tempo: linhas duras, que detêm a divisão binaria de sexo, profissão,
camada social, e que sempre classificam, sobrecodificam os sujeitos; e linhas flexíveis,
que possibilitam o afetamento da subjetividade e criam zonas de indeterminação,
permitindo-lhe agenciar.”
“De
acordo com Rolnik (1999), as rupturas de sentido ocorrem quando a subjetividade
é lançada na processualidade da vida e se vê forçada a trilhar novos caminhos
via agenciamento maquínicos, produtivos, a habitar novas formas de viver. Esse
é o movimento próprio da vida, da criação. As linhas da subjetividade compõem o
território existencial, o modo de existência de cada um de nós, e também
possibilitam que se exerça a invenção.”
“O
plano de organização sustenta as linhas duras da subjetividade, enquanto o
plano de consistência sustenta suas linhas flexíveis, que podem se transformar
em linhas de fuga que se dirigem para a invenção, para a estranheza da vida. Um
território existencial é formado quando os elementos heterogêneos que compõem a
subjetividade ganham alguma homogeneidade, determinada composição. Esse território
localiza-se na interface entro o que se repete e é conhecido e o que pode
afetar, desterritorializar, produzir outra composição , via agenciamentos.”
“o
que a cartografia persegue, a partir do território existencial do pesquisador,
é o rastreamento das linhas duras, do plano de organização, dos territórios
vigentes, ao mesmo tempo em que também vai atrás das linhas de fuga, das
desterritorializações, da eclosão do novo.”
“a
cartografia se contrapõe às pesquisas cientificistas tradicionais, objetivando
romper com as dicotomias teórico-prática, sujeito-objeto, articulando
pesquisador e campo de pesquisa.”
“Os
paradigmas emergentes e a cartografia ainda constituem desafios para nós,
pesquisadores formados dentro de uma tradição moderna, acostumados a
fragmentar, a racionalizar e a perseguir a verdade.”
“a
cartografia aponta para a construção de saídas e inspirações para quem se propõe
a estudar a realidade, promovendo uma flexibilização metodológica, que tem como
intuito escapar da reprodução e do acomodamento intelectual, características necessárias
para acompanhar as mudanças”
“A
cartografia exige rigor e, no caso , não se trata somente da sustentação da
singularidade e da invenção, mas também o uso dos conceitos incorporados à
processualidade da pesquisa, sustentando a pressão exercida pelo plano de
forcas no território acadêmico.(...) seu uso não deve ser dogmático, hermético.”
“a produção
de conhecimento calcada na cartografia implica um exercício de desapego `as
formas acadêmicas dominantes e instituídas, ainda que elas estejam
imanentemente presentes.”